Eu tenho horror a pobre

As primeiras horas de 2021 foram muito especiais, contrariando o sufoco do ano que passou. Primeiro com a família, rememorando as dores dos últimos meses e também projetando as possibilidades dos novos dias que se anunciam a todos nós. Depois, numa mudança de cenário e mentalidade, me vejo em volta de oito distintas pessoas da média burguesia paulistana e carioca. Tinha uma salvadora da pátria, mas ela era europeia. Dividi minha virada em três momentos: sagrado, purgatório e profano. E aqui destaco o segundo.

Eram três casais e três avulsos, todos acomodados num hall simpático e acolhedor de uma pousada no centro de Paraty. Às vezes as conversas eram paralelas, noutras a pauta se unificava e mostrava o quanto eram parecidos em seus ideais e convicções — eles tinham muitas delas. As bebidas espalhadas pelo balcão e pelas pequenas mesas não falavam tupiniquim, mas contribuíram para jogar no ar doses de uma brasilidade questionável, rasa e estereotipada. Todos ali tinham conhecimento aprofundando sobre as vinícolas da Itália, sobre as engrenagens do incansável mercado norte-americano e, claro, muitos anos de vivência frenética, porém organizada, em Cingapura. Até os perrengues da mobilidade urbana asiática foram elogiadas nesse bate papo cultural.

Quando cheguei a conversa já havia passado por temas nacionais, incluindo a vacinação e a obrigatoriedade dela. Segundo o resumo passado, os mais velhos bateram o martelo e não tomarão. Categoricamente. Será que alguém tinha dúvida disso? Eles realmente têm medo de se transformarem em jacarés? Penso no réptil que não estava na roda para se defender. O assunto que me recepcionou foi a diferença horária entre o Rio de Janeiro e São Paulo e no quanto as duas capitais se parecem no cumprimento dos afazeres diários. Uma, inclusive, assumiu publicamente que se atrasa de propósito e coloca a culpa no trânsito: ”Congestionamento horrível na marginal”, mentia. Até que cito a Bahia, Salvador e os interiores do estado para falar das minhas últimas influências de horário e espaço. Outra paulistana soltou, enquanto o pug dela comia as plantinhas do jardim: ”Aí que o tempo é outro mesmo.”

No lugar de chuva de prata, o que caiu sobre nossas caras foi o famoso golden shower. Num lapso de euforia para exibirem opiniões sobre o tempo na Bahia, a quantidade de frases marcadas e falas desconectadas tomou os minutos seguintes. “A Bahia tem um jeito”, já diz Caetano Veloso, mas ela não diz ‘’meu rei’’ e nem se limita aos polos elitizados de Trancoso, Morro de São Paulo e à própria parte alta de Salvador.

O hétero mais velho, com seus aparentes 49 anos, e que estava à minha frente comentou da vez que esteve num bar no Rio Vermelho e o bartender se recusou a tirar a vodka do drink de outra amiga, mesmo ela pagando pela ausência da bebida. Ele encerrou esse trecho com uma pergunta quase filosófica, pareando a dinâmica de trabalho sudeste versus nordeste, tendo em vista que antes da conclusão falávamos sobre trabalhadores autônomos nos buggys de Jericoacoara, no Ceará. Se perguntou, gesticulando e jogando para a plateia: ”Quem é que está certo? Quem é que está certo?” Mas é claro que é ele e o modelo farialimer de viver a vida. Tolinho!

Os gays presentes não fizeram questão em salvar a raça. Enquanto um fazia silêncio pastoral, metralhando levemente com olhares o que o parceiro dizia, o outro sabia de tudo, opinava sobre tudo, roubava a cena com sua beleza e visões de mundo. Num romance homoafetivo fica parecendo que há o orador oficial, o tagarela desenfreado, e o outro que precisa manter o mínimo de seriedade e calma viril.

O que mais chamou atenção nas inúmeras falas do bonitinho ordinário foi a bondade em dizer que se a funcionária da casa dele quisesse uma lata de atum, que pedisse e não roubasse: ”Não, porque a dona Lúcia [nome ilustrativo da patroa] tem condições eu posso pegar e ela não vai perceber”, disse o jovem simulando uma possível fala da empregada. Caridoso! O ideal mesmo seria aumentar o salário ou a diária da profissional que ele citava na conversa. Soaria retumbante a seguinte frase: ”Pago o dobro pra ela não precisar de nada.” Não dá arrepios só de imaginar? ”Eu tenho horror a pobre” foi o que deu pra entender. Mas não sei se entendi certo.

”Existem tipos de mendigos. Nem todos são bandidos. Tem o mendigo que só bebe a cachacinha dele e fica na boa. Agora, tem outros que pedem fralda pra gente e trocam por crack no morro”, disse a parte carioca do Leblon. Isso depois da paulistana ter dito que ”existem mendigos que gostam de ser mendigos” e, mesmo com oportunidade, eles ”voltam para as ruas por ser mais fácil.” Se você, leitor(a), também buscou dentro de si o mínimo de atualização a respeito dessa temática, vai perceber que o erro nesse diálogo já começa na expressão. O correto a dizer, segundo a Secretaria Nacional de Assistência Social, é pessoa/população em situação de rua, justamente por compreenderem que a situação enfrentada pelo sujeito é algo transitório, diversificado e não deve ser normalizado. Até o Word marca a palavra como ”linguagem social preconceituosa.”

Enfim surge uma voz, como vinda do céu, consciente, grave e etimologicamente compreendida dando aquele toque. Não foi a minha, a princípio, nem da salvadora da pátria citada no começo dessa história – que vai aparecer já já. Mesmo sabendo a forma correta de se reportar aos indivíduos em vulnerabilidade, escolheram continuar opinando sobre um tema caro a todos nós — com exceção da Bia Doria?

Não queria terminar enaltecendo a Europa e declarando oficialmente uma representante da sensatez.

O jogo até aqui foi tão invertido, que não vejo problema em fazer o impatriota e defensor da Itália. ”Mamma Mia” era o que ela soltava quando defendia suas poucas intervenções, o que achei um erro da parte dela, sinceramente. Uns falando tanta baboseira e quem deveria iluminar o novo ano se calou? A italiana corrigiu o colega comunicativo quando ele se atreveu a falar da Itália e das divisões culturais; disse que viver no Brasil, hoje, é bom por conta da qualidade de vida conquistada, mas que o país não está como no começo dos anos 2000, quando morou pela primeira vez em solos lulistas. Quando tentaram colocar a Ásia numa mesma massa homogênea, ela foi taxativa na resposta: ”Claro, é muito grande.” Já havia morado no Japão, na Grécia e em outros lugares desse mundão. Era conhecedora de algumas realidades e falou disso com propriedade e respeito. Não ostentou riqueza intelectual e nem os lugares que havia passado: ela apenas conversou.

Aos que se perguntam como fui parar lá, volte para o primeiro parágrafo e veja como dividi minha virada. A voz sensata que surgiu na conversa não era a minha, lembra?

Um registro simbólico que ilustra bem meu inconsciente.

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