A aura de Annie Ernaux já estava no ar antes mesmo dela pisar no cinema. Durante o final da manhã e começo da tarde do segundo dia da Flip, muitas pessoas começaram a trabalhar em prol da chegada dela no Cinema da Praça. “Ela vai entrar pela porta lateral”; “A organização disse que ela não vai falar com ninguém”; “Preciso de mais quatro vagas para uns convidados”. Inclusive, essa entidade chamada organização é igual àquela outra, o tal do mercado, sabe? Ninguém sabe quem é, mas ele dita muita coisa. A Secretaria de Cultura queria captar um vídeo curto com a escritora importante para o arquivo histórico e cultural da pasta. Até barganha tentamos fazer: eu te dou uma cadeira e você me dá a Nobel. Não deu muito certo. Este que vos escreve chegou a roteirizar cinco perguntas para essa gravação. Ao final digo quais foram, numa espécie de Gay Talese com Frank Sinatra resfriado, uma volta dos que não foram.

Na fila de entrada, muitas pessoas ansiosas para ver de perto aquela senhorinha com menos de um e sessenta de altura, com seus 82 anos e mundialmente reconhecida com o Nobel de Literatura, o mais importante prêmio que um profissional das palavras pode ter. Antes mesmo da programação oficial, que é paga, ela participou desse debate gratuito ao lado do filho David Ernaux-Briot, após exibição do documentário ‘Os Anos do Super 8’ produzido por eles dois. O filme é um compilado de registros familiares gravados pelo então marido de Annie, refletindo um ambiente muito mais amplo. Voltando para a querida no cinema, se tratando de Flip, todo debate paralelo e gratuito é muito lotado. Aí você junta isso mais o fato de: Annie Ernaux e toda pompa atrelada à figura dela. A francesa chegou caminhando ao espaço, mas saiu de carro para evitar possíveis assédios “ernauxmaníacos”, como cunhou O Globo.
Quando despontou de frente ao restaurante Punto Divino, enquanto toda plateia já estava dentro do cinema assistindo ao documentário, um fã que aguardava a chegada dela há mais de duas horas anunciou, bastante emocionado, que ela estava entre nós. Tanto o rapaz quanto alguns outros, inclusive eu, foram ao encontro. Cercada também por seguranças, Ernaux vinha com o filho, a moça que mediou o debate, uma tradutora e a representante de comunicação da editora Fósforo, responsável por toda a obra da escritora no Brasil. Inclusive, antes desse episódio, a Beatriz Reingeinheim, da Fósforo, havia me solicitado autorização para participar do debate dentro do cinema porque a ocupação, claro, estava esgotada. Eu lá sou algum paulistano metido a besta na cidade dos outros para desautorizar alguma coisa?
Ainda na rua, ela se ajeitou toda fofa para a foto oficial feita pelo Hermes de Paula, reproduzida em página inteira no jornal que circulou durante o evento. Foi a oportunidade para, além dele, fazer os registros desta publicação. Estávamos ali, de maneira bastante privilegiada, diante de uma representação histórica, literária, feminista e sociológica. As nossas imagens de Annie Ernaux foram as primeiras a rodar pelas redes, a minha talvez tenha sido a primeira por conta da espontaneidade do celular. Os seguidores do perfil da Secretaria de Cultura, antes mesmo dos leitores do O Globo, já tinham visto uma das principais estrelas da vigésima edição da Flip com seu vestidinho estampado, cabelo levemente desgrenhado e uma simpatia de iniciante. O fã que esperou ávido, por horas, claro, pediu e recebeu autógrafos e fotos.

Annie entrou pelo portão principal junto com o pessoal dela, se encaminhou para o camarim e, nesse meio tempo, o documentário dela tinha acabado e ajeitavam cadeiras e microfones para a conversa. Como uma estrela pop da literatura, Ernaux foi recebida com aplausos e reverências. Deveria ter apenas umas 100 pessoas nesse encontrinho de fãs no primeiro cinema público do município. Um aspecto cômico desse momento vai de encontro ao desespero da tradutora que não conseguia acompanhar o carrinho de rolimã que era Annie falando. A premiada simplesmente respondia as perguntas em francês, naturalmente, enquanto a tradutora tinha que ouvir e anotar tudo, senão depois não dava conta de relembrar e traduzir. A profissional parecia o Chico Xavier em velocidade de reprodução dupla, sabe? Tudo muito espontaneamente cômico, vale destacar. Todas as perguntas foram respondidas, com exceção a uma que nem foi feita pela jornalista do G1. David Ernaux deu prioridade para as pessoas comuns e deixou a imprensa de lado.

A sessão acabou, aplaudida de pé, Annie mandou beijinhos, recebeu metade daquele grupo para autógrafos, fez registros e foi tietada. Uma dessas fãs marcou muito: ela também havia feito um aborto, assim como Annie. Enquanto Beatriz organizava a fila, eu tive que pedir mais dez minutos para encerrar aquela festa da uva por conta da programação seguinte. E assim foi feito. A última da fila foi Anabela Mota Ribeiro, vale dizer, uma das jornalistas mais especiais e inteligentes que já vi e conheci – porque disse pessoalmente, lembrando da mesa dela com a icônica Liudmila Petruchévskaia em 2018. Enquanto a francesa atendia as pessoas, a mulher que havia abortado já tinha feito a confissão durante as perguntas. A partir daí as duas criaram uma conexão e simplesmente viraram amiguinhas, como se estivessem numa fila de banco. A fala da professora paranaense ainda na plateia se estendeu para o camarim do Cinema da Praça: mais 15 minutos de compartilhamento de histórias e tietagem de mais alto nível.
Antes daquele grupo que chegou com a Nobel sair pela mesma porta, no camarim estava um profissional da Cultura fazendo a barba. Sim, com aquela gilete da cor azul. Eu atravesso a porta e me deparo com ele meio abaixado, como se estivesse lavando o rosto e digo: “Annie Ernaux vai passar por aqui.” Ele: “Ela é importante, é?” Eu: “É só a Nobel de Literatura, coisa pouca.” “Então vou sair daqui.” Eu acho que ele ficou atrás de uma porta durante todo tempo em que Annie ficou ali dentro. Assim como eu, imaginou que seria rápido. Não foi.

Sim, senhoras e senhores, eu fiquei preso num ambiente ainda mais seleto com a Nobel de Literatura: eu, ela, a fã, uma outra moça muito simpática e o Ghustavo Muniz que cuidava da bengala e da autora pouco requisitada – só que não. Ali, só a gente, como se estivéssemos num banheiro de balada, falando de França, aborto e Paraná. Como pessoas normais. Juro para você, leitor: pessoas normais. Agora não sou mais normal, desculpa, nem eu e nem a Ana Carolina Teixeira Pinto que se uniu a Annie para traçar um paralelo de lutas e desejos pelo protagonismo das mulheres não somente de seus respectivos países. Juntas ali naquele banheiro-camarim, elas reconectaram a coragem e a gratidão mútua. Obrigado Maria Firmina dos Reis por me proporcionar este relato.
Essa Flip me colocou em muitas outras histórias e presenças. Foi muito simbólica em diversos aspectos, afinal, em 20 anos, trouxe para o centro das discussões e das homenagens a primeira autora negra. Ainda assim, a cor de Maria Firmina pouco foi estampada nas matérias do jornal que, nos cinco dias de programação, trouxe mais que o dobro de personagens brancos para falarem sobre suas intelectualidades e percepções. Quem sabe daqui outros 20 anos essas matérias mudem.
Não veio aí
Como Gay Talese, que deveria cumprir uma pauta com Frank Sinatra, mas impossibilitado por conta de um resfriado, o jornalista não deixou a matéria cair e produziu um texto impecável “sem” o artista. Mesmo sem a fala direta da Ernaux, fiz essa limonada. Abaixo, o roteiro objetivo do que seria perguntado para a escritora.
[Introdução, agradecimento, apresentação do entrevistador, situando o local e o dia da gravação]
1- Como você recebeu a notícia que havia ganhado o Nobel de Literatura? Você se lembra o que estava fazendo no dia?
2 – O Cinema da Praça é um espaço de promoção de oportunidade para diferentes pessoas e idades. É um cinema público e gratuito. Partindo disso e relembrando sua história, qual a importância você dá para a produção audiovisual? De que maneira ‘Os Anos do Super 8’ te liga ao cinema? Você e seu filho ainda assistem coisas juntos?
3 – No livro “O Lugar” você relembra um pouco da sua relação com seu pai e também com a realidade que vocês viviam. E ele era um homem com conhecimentos próprios: do domínio do comércio, da venda, até os afazeres da manutenção da casa. Dito isso, em Paraty também temos esse conhecimento imaterial, só que reconhecido culturalmente. Hoje como você identifica a sabedoria do seu pai?
4 – Antes mesmo da sua participação na programação oficial da Flip (que será no sábado), você participa dessa mesa no Cinema da Praça, de forma gratuita e aberta ao público. Isso representa alguma coisa pra você? A literatura e o cinema precisam estar acessíveis e essa é uma forma?
5 – (Descontrair) Já experimentou algum prato da nossa gastronomia, Annie?
